Ecdise
Encosto o meu ouvido na terra e escuto o diálogo subterrâneo:
Órfãs de mãe já nascemos e por Deus feitas, sem asa,
mas nós sabemos que somos ,que somos cigarras!
Por longos fios de seda, mergulhamos na terra viva,
fazendo nela morada, na maior parte nossa vida...
Ah, ninfas da noite constante e de seiva se alimentando,
que despem-se na espera da roupa alada, como imberbe viajante.
Imagino o tudo que passa neste mundo rotundo e velado:
fina gastromonia, aula de canto e talvez bailado...
Tudo isso me deixa silente e com os olhos marejados
por lembrar das moradoras do abacateiro,
quando meus pés mediam menos que um palmo.
O que faz um ser viver, por tanto tempo exilado,
no silêncio da alcova, quase um círculo preso num quadrado?
Ouvi um barulho na terra!
-Nós temos um canto guardado!
Sairemos, em breve, por um túnel, a cumprir nosso desiderato,
deixando o esqueleto grudado, abrindo o peito de aço,
na mais lancinante canção : a busca da parte companheira,
que não dura a vida inteira e morre depois da ovulação.
Infinito é nosso canto, sempre barítono ou tenor.
Enganam-se conosco, pois não morremos como cantor.
Dizem que trazemos chuva, que nosso canto é canto de dor...
Se nos levam a primavera, isso é confirmado.
Mas quem é feliz com um traidor?
E eu me pergunto as razões de tão potente grito,
e só uma resposta há, no final, e que me deixa aflito:
urgência da vida, que não espera, não se repete e segue sem fim...
E eu que moro há tanto tempo dentro de mim,
submerso nas crostas da ambivalência, das incertezas, construções, das
alegrias e tristezas, dos feitos e desfeitos...Vou rompendo o chão, na
ecdise que faço a cada dia, extraindo o meu alimento da poesia, húmus
da vida, remédio para tantas feridas...
Sou uma cigarra desigual, canto o tempo todo e copulo com a aurora
gerando sementes para florir o equinócio de um centurião...
Sim, meio século já vivi e não posso ficar aqui: a vida, a vida segue sem fim...
Ainda na Terra, sou ovo de estrela distante, chocado por uma noite constante, rompida na luz de cada manhã...
Subo e desço por fios de seda, despindo-me e vestindo-me,
por seiva alimentado, mas não passo por longo tempo, calado:
meu coração é um túnel para o mundo iluminado!
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